Pinguelli construiu e trilhou muitos caminhos e nunca perdeu o rumo
por Andre Spitz, presidente do COEP Brasil
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Conheci o Pinguelli no final da década de 80. Nos reencontramos em 1985, no Ibase, que tinha um grupo de colaboradores voluntários, do qual eu e Pinguelli fazíamos parte. Frequentávamos as reuniões mensais de análise de conjuntura, coordenadas pelo Herbert de Souza, o Betinho. Os encontros reuniam pessoas de vários setores, incluindo a área de energia. Na época, eu trabalhava em Furnas e Pinguelli, na Coppe. Logo estabelecemos uma relação próxima, pois tínhamos muita afinidade, o que ao longo dos anos gerou uma importante e produtiva parceria e uma amizade.
O final da década de 80 foi um período muito complicado para o setor elétrico. Depois da crise do petróleo, houve uma contenção das tarifas de energia elétrica e isso levou o setor a uma crise sem precedentes. As relações entre as empresas estaduais e federais se tornaram muito conflituosas.
Quando começou o governo de Fernando Collor, em 1990, iniciou-se no Brasil o que se pode chamar de período neoliberal. Collor criou o Programa Nacional de Desestatização e o setor elétrico passou a enfrentar mais uma pressão – a dos que defendiam a sua privatização. Todos esses temas eram discutidos nas reuniões mensais no Ibase. A interdisciplinaridade dos participantes e dos debates fazia com que as reuniões fossem muito interessantes e uma grande oportunidade de aprofundarmos nossa visão do Brasil e do mundo.
Em 1990, Pinguelli foi indicado coordenador do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Pinguelli sempre alargava o horizonte das organizações em que estava. Era muito empreendedor, estava sempre pensando em criar coisas novas, em inovar. Ele nunca ficou restrito ao seu cargo formal: tinha muitos braços, muitas articulações. Era uma pessoa que construía redes de maneira muito interessante. E, como era muito respeitado e uma liderança nacional, era interlocutor de outros intelectuais e especialistas nas mais diversas áreas. Quando ele foi para o Fórum, levou essa articulação consigo, como já tinha feito na Coppe e faria em mandatos posteriores na diretoria da Coppe, na presidência da Eletrobras e no Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas.
Uma dessas ideias inovadoras foi o Fórum de Energia, que Pinguelli criou no Fórum de Ciência e Cultura, logo após sua chegada. Com base na experiência do Ibase, criamos um espaço de articulação e discussão das questões dos setores de energia. Pinguelli era o coordenador do Fórum e eu o apoiava, como voluntário, fazendo a parte mais operacional, executiva e de articulação.
O Fórum de Energia era bem informal. A proposta era que fosse um espaço de discussão, reflexão e incidência sobre as questões do setor. Na época havia muitas crises: entre as empresas estatais e as privadas; dentro da Eletrobras; entre as empresas federais e as empresas estaduais. Todo tipo de crise que se possa imaginar. Pinguelli conseguia reunir, nos encontros, representantes dos sindicatos e associações dos trabalhadores, especialistas e representantes das empresas privadas e das empresas federais e estaduais. Era um espaço de diálogo e articulação destes grupos. Foi uma experiência muito interessante e importante.
Nessa época o setor elétrico tinha três grandes questões. Uma era a organização do setor e das relações entre os diversos agentes setoriais. A outra era a discussão sobre a regulamentação do artigo nº 175 da Constituição, sobre as concessões de serviços públicos, que previa que todas as concessões seriam dadas por licitação. Neste tópico, o fundamental era definir se as empresas estatais, federais e estaduais deveriam ou não participar das licitações. E o outro grande tema era a privatização.
Com base em toda a articulação construída no Fórum de Ciência e Cultura, Pinguelli dialogava sempre com parlamentares do Senado e da Câmara. Além de Miro Teixeira, conversava com Jorge Bittar e Jandira Feghali, deputados do Rio de Janeiro; Luciano Zica, deputado de São Paulo; e Fernando Ferro, deputado de Pernambuco. No Senado seus principais interlocutores eram Eduardo Suplicy e Mário Covas, de São Paulo, e Teotônio Vilela Filho, de Alagoas. Além disso, havia se convertido em uma das principais vozes de assuntos ligados a energia: era constantemente consultado por jornalistas e convidado para debates.
Itamar Franco, vice-presidente do governo Collor, tinha uma relação especial com Pinguelli. Quando senador, Itamar fora relator da CPI sobre o acordo nuclear Brasil Alemanha, na qual Pinguelli teve uma participação importante. Quando se tornou presidente, depois do impeachment de Collor, Itamar recorreu ao Pinguelli como um consultor informal. Fomos, nós dois, em nome do Fórum de Energia, para uma reunião com o presidente, que queria ouvir sua opinião sobre a retomada das obras de Angra II. Pinguelli apresentou ao presidente uma lista de questões que deveriam ser consideradas no processo de tomada de decisão. Um fato que me marcou foi que, ao deixarmos o Gabinete do Presidente, na entrada do Palácio do Planalto, havia muitos jornalistas querendo saber o que Pinguelli tinha falado com o presidente. Pinguelli fez uma síntese das questões apresentadas. No dia seguinte, a manchete dos jornais foi: “Pinguelli é a favor da retomada da usina de Angra II”, manchete em bem diferente do teor da conversa de Pinguelli com os jornalistas.
No final de 1993, estivemos outra vez com Itamar, quando houve uma lei que mudou as regras para cálculo das tarifas do setor elétrico. Essa lei resolveu o problema das dividas das empresas, mas acabou com a determinação das tarifas pelo custo do serviço. Essa lei, em conjunto com a posterior regulamentação do artigo nº 175 da Constituição, foram os pilares das mudanças que viabilizaram o processo de privatização de empresas elétricas iniciadas no governo Fernando Henrique Cardoso. Elas também foram importantes para viabilizar uma transição progressiva para o modelo mercantil, que tantos problemas vem trazendo para o setor de energia elétrica e seus consumidores.
Na reunião, além do presidente, estavam o ministro de Minas e Energia e o presidente da Eletrobras. Pinguelli fez uma apresentação muito objetiva, com transparências (parecia uma aula), destacando os principais pontos a serem resolvidos. Embora tenha sido importante o Pinguelli expor seu posicionamento, suas ponderações no encontro tiveram pouca influência em como as coisas evoluíram. Minha impressão foi que a reunião tinha ocorrido exclusivamente por demanda do presidente Itamar.
Pinguelli também teve interlocução com o Governo Fernando Henrique. Em 1995, com apoio do senador Teotônio Vilela Filho, Pinguelli articulou uma reunião sobre a polêmica regulamentação do artigo nº 175 da Constituição, com a presença dos participantes do Fórum de Energia e da equipe econômica de FH – a qual, como se pode imaginar, tinha uma visão totalmente diferente da nossa sobre o assunto.
A reunião era ampla e contou com a participação de representantes do alto escalão do Ministério da Economia, assessores, representantes do Congresso e participantes do Fórum de Energia, particularmente representantes de trabalhadores e das empresas estatais de energia federais e estaduais. Antes do encontro, fizemos uma conversa prévia com os participantes do Fórum, apoiada pelo Gabinete do Senador Teotônio Vilela Filho. Foi combinado que Pinguelli faria uma apresentação e os demais complementariam. Mas a reunião foi muito tensa e saiu tudo diferente do previamente combinado. Houve um bate-boca inesperado e o pau quebrou, quase chegando as vias de fato. Pinguelli praticamente não teve oportunidade de falar e quando falou tentou trazer o debate de volta.
Lá pelas tantas, um deputado disse: “Professor Pinguelli, eu não concordo com as suas ideias, mas queria dizer ao senhor que o tenho em alto conceito, pois o senhor foi a pessoa mais civilizada dessa mesa”. É interessante: Pinguelli defendia os seus pontos de vista de maneira incisiva, mas não ofendia as pessoas, não agredia ninguém. Gostava de uma discussão, mas respeitava muito o debate.
Parceria com Betinho
No inicio dos anos 90, a relação entre Pinguelli, Betinho e eu foi se ampliando. Nos encontrávamos muito. Betinho muitas vezes expressou preocupação com as privatizações, embora também tivesse sérias críticas às empresas estatais, que considerava autoritárias, fechadas e com pouca conexão com a sociedade. Defendia uma outra ideia: a da empresa pública.
Betinho costumava dizer que as empresas estatais e também as privadas deveriam ser públicas, ou seja: relacionar-se com a comunidade, ter no conselho a participação de consumidores e grupos sociais e não ter o lucro como principal objetivo. Betinho em muitas situações era um visionário, tinha capacidade de ver o que vinha pela frente e saber comunicar essas ideias inovadoras: esse conceito hoje é bem atual e está sendo discutido em muitos países.
Na revisão constitucional de 1993, com apoio do Pinguelli, conseguimos, através do deputado Miro Teixeira, fazer várias emendas que colocavam a questão de transformar empresas estatais em empresas públicas. Nenhuma delas passou, mas hoje vejo que foi um esforço muito importante.
Naquela época, além de lidarmos com a privatização do setor elétrico, estávamos também dedicados ao Movimento Pela Ética na Política, que surgiu em 1992, a partir de uma intensa mobilização nacional de resistência pela democracia e contra a corrupção.
O movimento conseguiu agregar dezenas de entidades, tais como OAB, ABI, CNBB, UNE e diferentes centrais sindicais, entre outras grandes organizações nacionais. Pinguelli era um colaborador e as reuniões no Rio de Janeiro aconteciam no Fórum de Ciência e Cultura, sob a sua coordenação.
Ação da Cidadania
Depois do impeachment do Collor, houve uma reunião do Movimento Pela Ética na Política no Fórum de Ciência e Cultura cujo objetivo era fazer uma avaliação do movimento e discutir os próximos passos. Lá pelas tantas, dom Luciano Mendes de Almeida, que era uma pessoa brilhante, pediu a palavra: “Olha, eu acho que a gente deveria convergir essa nossa energia para a questão do combate à fome. Não existe mais nada mais aético no Brasil do que a fome”. Betinho apoiou e a partir dali começou a idealizar e a organizar no Ibase a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida.
Tivemos uma intensa participação na criação da campanha, que tinha uma proposta muito simples: qualquer um pode fazer alguma coisa. Todo mundo deveria participar e cada um precisa encontrar a sua forma de participar. “Criem comitês, se juntem, façam alguma coisa e avisem pra gente o que fizeram”, dizia Betinho. Era uma inciativa muito descentralizada. Quando as pessoas diziam que Betinho era o coordenador da Ação da Cidadania, ele respondia: “Não sou coordenador de nada, sou um animador”.
A campanha teve uma adesão impressionante. O Brasil estava muito mobilizado naquela época e o Betinho catalisou a vontade que todo mundo tinha de fazer alguma coisa. Ele falava: “Já tem muita gente fazendo, mas precisamos fazer muito mais, porque combater a fome a pobreza é uma necessidade urgente”. E realmente foi isso que aconteceu. Betinho se tornou uma grande liderança nacional. A mobilização não era assistencialista. A fome era o ponto de partida, pois como dizia o Betinho “quem tem fome tem pressa”. A campanha tinha por inspiração os cinco princípios da democracia: solidariedade, diversidade, igualdade, liberdade e participação. Sorte do país que pode ter uma pessoa como Betinho à frente de uma iniciativa deste tipo.
O COEP
Minhas reuniões com Pinguelli eram sempre na hora do almoço, na Coppe ou de noite, na sua casa, quando também conversávamos sobre os mais diversos assuntos. Já com Betinho, nossas conversas eram sempre no Ibase ou em intensos e divertidos almoços em diferentes locais. Logo depois do lançamento da Ação da Cidadania, tive uma ideia e fui conversar com Pinguelli em sua casa. Pinguelli adorou a ideia e dali mesmo ligamos para o Betinho e marcamos um encontro na casa dele no dia seguinte.
Estávamos todos muito empolgados com a mobilização e a energia da Ação da Cidadania. A ideia era criar um comitê, no âmbito da Ação da Cidadania, composto por organizações, empresas, universidades e instituições públicas. A partir do aprendido em nossas iniciativas anteriores no Ibase, no Fórum de Energia e nos debates sobre empresas públicas, propusemos articular organizações e dar um sentido verdadeiramente público às empresas estatais e organizações governamentais, tendo o combate à fome como eixo. Assim teve início o trabalho de criação do Comitê de Entidades Publicas no Combate a Fome, a Miséria e pela Vida – COEP.
Então, combinamos escrever uma carta para os presidentes das empresas estatais e outras organizações públicas, convocando para uma reunião no Fórum de Ciência e Cultura. Mandamos a carta, assinada por Betinho e Pinguelli, para os presidentes das maiores empresas do Brasil: Eletrobras, Furnas, Chesf, Petrobras, BNDES, Banco do Brasil, Fiocruz, UFRJ, Embrapa, Banco do Nordeste, CEF, Finep, IBGE, Vale do Rio Doce, Embratel, Ipea, Ibase…. Eram trinta e tantas organizações. Foram todos! Betinho depois falava num tom de desafio que parecia impossível, mas não foi: “Pinguelli, nós somos muito ousados! Nós, duas pessoas da sociedade civil, escrevemos uma carta para os presidentes das maiores organizações estatais do Brasil, convocando para uma reunião, e não é que todos foram?”. Betinho e Pinguelli compartilhavam essa atitude de não desanimar diante de coisas que parecem muito difíceis e descobrir um jeito de torná-las possíveis.
Naquela época, Betinho e Pinguelli estavam muito empoderados junto ao presidente Itamar Franco. Pinguelli, por sua articulação anterior com o presidente; e Betinho, porque havia se tornado uma referência nacional com a campanha. E Itamar precisava de muitos apoios para poder governar após o impeachment.
Em março de 1993, a primeira reunião desse colegiado formado pelas empresas foi incrível: Dom Mauro, que era presidente do Conselho de Segurança Alimentar, estava presente; o presidente da Câmara dos Deputados compareceu e até um governador participou. Betinho fez uma apresentação sobre a questão da fome no país e propôs a criação do COEP. O presidente de Furnas, Marcelo Siqueira, falou: “Vamos criar esse comitê, mas sugiro que o presidente seja o Betinho”. Betinho não gostava de cargos, mas respondeu: “Eu topo ser o coordenador, desde que o André seja o secretário executivo”. Eu trabalhava em Furnas e o Marcelo prontamente e de forma entusiasmada concordou.
O COEP começou a funcionar naquele dia, mas foi criado oficialmente em outra reunião, em agosto de 1993. Os presidentes foram embora com uma sugestão de primeiras iniciativas que as organizações poderiam realizar e com o dever de casa de trazer propostas de ação. A empolgação e engajamento de muita gente em Furnas foi fundamental.
No encontro de agosto, começou a ser construída uma articulação entre as empresas. O Betinho sempre falava: “Foi a primeira vez que as empresas se sentaram para discutir uma coisa que não tinha relação direta com o suas atuações até então”. Houve propostas muito interessantes. A Petrobras, por exemplo, ia procurar petróleo no semiárido nordestino e, quando achava água, tampava o poço. A proposta da Petrobras era dar o uso público aos poços da água que encontravam. A Embratel ofereceu disponibilizar o uso do satélite para ações sociais. Daí surgiu o Canal Saúde, da Fiocruz. As empresas elétricas tinham muitas terras em torno dos reservatórios; a ideia era fazer hortas comunitárias e produzir peixes de forma sustentável em seus reservatórios.
Enfim, eram ideias inovadoras e possíveis; muitas delas foram feitas. Algumas ações que desenvolvemos no COEP deram origem a políticas públicas. O programa nacional de incubadoras populares, que existe em mais de 100 universidades brasileiras, surgiu lá. A Fiocruz queria substituir a empresa terceirizada que trabalhava para eles por uma cooperativa de trabalhadores de Manguinhos. Organizamos uma reunião no Fórum para discutir como a UFRJ poderia apoiar a iniciativa da Fiocruz. Na reunião, além do Pinguelli e eu, participaram o Lécio Costa, especialista em cooperativismo do Banco do Brasil, e o Roberto Bartholo, da Engenharia de Produção da Coppe, que sugeriu a criação de uma incubadora de cooperativas populares nos moldes da incubadora de empresas tecnológicas já existente na UFRJ. Pinguelli se empolgou com a ideia e convidou o Gonçalo Guimarães para implementar a incubadora na Coppe.
A ideia foi tão inovadora e bem sucedida que através do COEP conseguimos mobilizar a aprceiria de entidades associadas ao COEP e criamos o Proninc – Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas de Trabalho, para apoiar a incubadora da Coppe e criar mais cinco incubadoras em outras universidades, em diferentes regiões do Brasil.
Até 1994, o COEP era uma uma rede informal. Decidimos que seria importante institucionalizar o Comitê, criando e assinando um difícil e criativo convênio entre as mais de 30 organizações públicas. Esta também foi uma iniciativa inovadora e realizada em pouquíssimo tempo. Mais uma vez, o apoio do pessoal de Furnas foi fundamental. Betinho ficou como presidente, e o conselho era formado por Pinguelli, Anna Peliano, do Ipea, e dom Mauro Morelli – conselheiros estatutários – e pelos dirigentes das organizações associadas.
Quando, em 1997, o Betinho morreu, foi uma grande tristeza para todos nós. Betinho era nossa maior referencia e liderança mobilizadora. Eu não sabia se, sem ele, conseguiríamos levar o projeto adiante. No final do ano, fizemos uma reunião do Conselho Deliberativo do COEP em homenagem ao Betinho, em Brasília, que contou com a participação dos dirigentes das organizações associadas e da primeira-dama Ruth Cardoso. No encontro assumimos o compromisso de ir em frente. Fui indicado para assumir a presidência do COEP, o Pinguelli se tornou presidente de honra e Gleyse Peiter, de Furnas, assumiu a secretaria-executiva.
Na criação do COEP, em 1993, Pinguelli indicou a Coppe para ser a sua sede, embora a secretaria executiva fosse exercida desde o início por Furnas. Através do empenho do Pinguelli, conseguimos um espaço fisico na Coppe. Mais na frente, em 2009, ele deu todo apoio na implementaçã que continua funcionando na Coppe.
Quando havia emergências, como as chuvas no Rio de Janeiro e as secas no semiárido, costumávamos fazer uma mobilização para ver como as empresas poderiam somar esforços para ajudar as vítimas. Em 1996 houve uma grande enchente no Rio de Janeiro e criamos várias frentes de trabalho. Junto com Pinguelli, fizemos um seminário na Coppe sobre as enchentes, que resultou em um livro chamado Tormentas Cariocas. Pinguelli sempre pensou em colocar a universidade a serviço da sociedade. E isso virou uma prática da Coppe: mobilizar o conhecimento técnico para promover o debate e soluções para melhorar a vida da população. Assim, a Coppe ganhou uma imagem muito positiva aos olhos da sociedade.
A recriação do Consea e a criação do Programa Fome Zero, em 2003, no início do Governo Lula, trouxe novas sinergias para o COEP e para a participação das suas organizações associadas. A partir de uma articulação que envolveu Frei Betto, Pinguelli e eu, o COEP mobilizou suas organizações associadas a criarem um programa de apoio ao Fome Zero. Em maio de 2003, em uma reunião com o presidente Lula e 37 dirigentes das organizações associadas ao COEP, capitaneados por Pinguelli, entregamos ao presidente Lula um relatório com mais de 300 iniciativas.
Pinguelli foi fundador e participante ativo e fundamental no COEP em suas iniciativas e articulações. Sempre se fez presente nas mobilizações e eventos. Falava com alegria, engajamento e esperança das realizações e projetos do COEP. Sempre conversávamos sobre os exemplos e aprendizados dessa inovadora iniciativa que teve representação em praticamente todos estados e muitos municípios do Brasil, envolvendo, no seu conjunto, mais de 1000 organizações, e que deu origem a uma rede de pessoas e a uma rede de comunidades. Particularmente, destaco aqui a forma coletiva como construimos a rede e sua forma de gestão; a importância da participação engajada das e dos representantes das organizações, sem as quais nada seria como foi; e o impacto dos resultados e o potencial de iniciativas inovadoras, que mostravam que um outro jeito de pensar e agir possibilitavam caminhos para mudar o Brasil e que acabar com a miséria e a fome é um projeto tecnicamente possível, caso haja vontade política de fazê-lo.
A criação do Ilumina
Em 1996, ainda no primeiro mandato de FHC, a pressão para a privatização das empresas estatais federais de geração se ampliou. Tendo como lastro a participação no Ibase, a articulação realizada no Fórum de Energia, as discussões sobre a transformação das empresas estatais em empresas públicas e a forte mobilização dos empregados de Furnas na defesa da empresa e na resistência ao processo de privatização, tive a ideia de criar uma organização não governamental (ONG) para fortalecer a defesa da atuação pública no setor elétrico e discutir alternativas para a organização do setor e suas empresas. Contando com o apoio do Pinguelli e do Betinho, um grupo de empregados de Furnas deu forma a essa ideia e mobilizou pela sua implementação. Dai surgiu o Ilumina, cujo slogan dizia: “eletricidade não é coisa de 110 ou 220, mas de 220 milhões de pessoas”. A frase foi criada pela Nadja Rebouças, também colaboradora do Ibase, que desenvolveu toda a comunicação visual do novo instituto.
A implementação do Ilumina contou com o fundamental apoio dos empregados de Furnas das áreas técnicas e administrativas e de muitos gerentes, que lotaram o auditório do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, em Botafogo, no Rio de Janeiro, na assembléia de criação do Ilumina. Posteriormente, o Ilumina contou com a adesão de muitos especialistas de empresas, universidades e sindicatos de diferentes estados brasileiros. Pinguelli teve participação destacada na articulação e criação do Ilumina, tendo inclusive participado de sua direção. Betinho não pôde participar da assembleia de criação por questões de saúde, mas enviou uma mensagem de apoio e escreveu um artigo na publicação de lançamento do instituto. O Ilumina se mantém ativo e tem realizado diversas iniciativas voltadas para o debate e o questionamento das mudanças que vêm sendo implementadas no modelo da organização do setor, nas razõoes dos apagões e na defesa da Eletrobras pública.
Eletrobras
Em 2003, quando foi indicado presidente da Eletrobras, Pinguelli fez muitas inovações na gestão da empresa. Destaco aqui algumas nas quais estive diretamente envolvido, que foram inspiradas em ideias e iniciativas que desenvolvemos juntos, anteriormente no Ibase, no Fórum de Energia e no COEP. Recriou o Consise, um conselho formado pelos presidentes de todas as empresas do grupo, mas inovou nos seus objetivos e forma de atuacao. O Consise passou a ser um espaco de dialogo, cooperacao e trabalho conjunto das empresas. Criou também uma coordenação de desenvolvimento humano e responsabilidade social. Pinguelli me requisitou a Furnas para trabalhar com ele e ser o secretário executivo do Consise e gestor da recém criada coordenação.
No comando da Eletrobras, Pinguelli teve uma postura totalmente inovadora na relação com o Movimentos dos Atingidos por Barragens (MAB), estabelecendo uma relação de confiança, diálogo e proatividade. Criou uma ouvidoria, fortaleceu o apoio ao COEP, ao Fome Zero, à área ambiental, às atividades de conservação de energia e ao Programa Luz para Todos.
Na área cultural, a Eletrobras anteriormente costumava apoiar grandes produções de cinema e teatro. Os critérios para o apoio não eram de conhecimento público. Criamos uma política cultural que também apoiava outros segmentos culturais, além de pequenas produções de cinema e teatro em todas as regiões do Brasil. Os projetos foram selecionados através de edital publico, por um comitê de pessoas com notória participação no meio cultural e com critérios públicos. Foi uma grande mudança que gerou uma forte reação. A pressão foi enorme, chegou a sair matéria no Jornal Nacional. Pinguelli combinou uma reunião com significativos representantes do cinema e do teatro e conseguiu amenizar os ânimos. Também publicou um importante artigo no jornal O Globo. Ele tinha uma grande capacidade de dialogar.
Lendo o discurso de posse e o balanço da gestão do Pinguelli na presidência da Eletrobras, depreende-se o volume e a qualidade das suas realizações em apenas 16 meses de gestão.
Olhando em retrospectiva para a demissão do Pinguelli da presidência da Eletrobras, penso que esse lamentável e decepcionante episódio representou um sinal, entre diversos outros, da enorme crise institucional que vem se aprofundando no Brasil, envolvendo os poderes Executivo e Legislativo, alimentada pela captura do Estado por interesses privados e seus malignos efeitos na administração pública direta e indireta, bem como nos processos de privatização de bens públicos. Penso ser importante e urgente debater essa complexa questão e implementar iniciativas que possibilitem a desprivatização do Estado e daquilo que é público no Brasil. Acredito que esta tenha sido uma importante questão que o Pinguelli defendeu ao longo de toda sua trajetória.
Pinguelli procurou aproximar a Eletrobras do conceito de empresa pública e não por acaso finalizou seu discurso de posse na Eletrobras citando trechos de falas do Betinho.
Apoiadores do Pinguelli mobilizaram uma mocao de apoio ao Pinguelli e uma justa, prestigiada e emocionante homenagem foi realizada na sede do Clube de Engenharia no Rio de Janeiro, logo após sua saída da Eletrobras .
Mudanças climáticas
Em 2009, Gleyse Peiter e eu fizemos uma reunião com Piguelli para conversamos sobre a ideia de mobilizarmos a Rede COEP para a temática das mudanças climáticas. Ao longo da reunião, vimos a necessidade de criarmos uma articulação ainda mais ampla, colocando a questão do impacto das mudanças climáticas nas populações vulneráveis no centro do debate e mobilizando governo e sociedade para a necessidade de desenvolvermos políticas públicas de adaptação. Nesse sentido, Pinguelli criou, no âmbito do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, o grupo de trabalho “Mudancas Climaticas, Pobreza e Desigualdades”, que foi coordenado pelo COEP através do Laboratório Betinho.
Muitas iniciativas de mobilização, capacitação e pesquisa foram desenvolvidas, cabendo destacar que, em meados de 2010, o GT assumiu o desafio de propor ao governo federal princípios, objetivos e diretrizes para um Plano Nacional de Adaptação aos Impactos Humanos das Mudanças Climáticas. O trabalho contou com a colaboração dos participantes do GT – ASA, Care, Consea, Fase, Fiocruz, Ibama, Ibase, Rebrip, Oxfam, Vitae Civilis e WWF Brasil –, reunidos em um seminário realizado em Brasília que teve a participação de 139 pessoa e de 49 entidades da sociedade civil e do governo. O documento final e duas publicações, detalhando os trabalhos do GT, foram entregues em 2011 à presidenta Dilma, em reunião do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas, coordenada por Pinguelli. O ineditismo dessa iniciativa, a articulação e sinergia que promoveu, certamente tiveram relevância para colocar a necessidade e a urgência da promoção de políticas públicas de adaptação aos efeitos das mudanças climáticas, principalmente para as populações e áreas mais vulneráveis.
Pinguelli
Finalmente, faço uma reflexão sobre algumas características do Pinguelli, que me marcaram e, na minha opinião, marcaram sua trajetória:
Sua permanente inquietude criativa promoveu inovação por onde passou; buscava e exercia a interdisciplinaridade em tudo que fazia; incentivava a cooperação e o trabalho em redes. Pinguelli mantinha a simplicidade nas relações pessoais e de trabalho e tinha coragem, ousadia e empreendedorismo nas suas iniciativas. Não se intimidava com o poder, com autoridades e com a burocracia sem sentido; abria espaço, valorizava e era generoso com as pessoas e causas em que acreditasse. Bom comunicador, tinha sempre um jeito fácil de explicar coisas enroladas e era rápido em fazer interessantes comparações e tiradas perspicazes e engraçadas. Era um ótimo orador e bom de debate. E, apesar de ter atuado em tantas frentes, nunca deixou de lado o compromisso com o ensino e a pesquisa e, em especial, com seus alunos e alunas, que tratava sempre com prioridade.
Na minha visão, Pinguelli, ao longo de sua trajetória, teve muitos resultados: exerceu uma participação relevante na formação de muitas pessoas; ampliou o alcance das organizações e das ações nas quais participou e se envolveu; construiu e fortaleceu muitas iniciativas e causas; de forma progressiva, com muita articulação e interlocução, foi ampliando seu espaço de atuação, complexificando cada vez mais seu lastro e sua responsabilidade. Com suas ações, atitudes, jeito de ser e a força de sua liderança, Pinguelli construiu e trilhou muitos caminhos e nunca perdeu o rumo, o que está ficando cada vez mais difícil de encontrar.
No seu livro autobiográfico, Pinguelli diz que Betinho foi seu último guru. Quando li, fiquei pensando: sou uma pessoa de sorte, pois tive a oportunidade de sonhar, atuar e construir caminhos com dois dos meus gurus – Pinguelli e Betinho.
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