Te trago mil mônadas quânticas: realizando o impossível com Luiz Pinguelli Rosa

por Nelson Job, psicólogo e professor (doutor e pesquisador do departamento de História das Ciências, das Técnicas e Epistemologia da UFRJ)

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Inimigo será, neste sentido, aquele que não aceita discordar. Inimigo é aquele que exige concordância, sempre; amigo, pelo contrário, é aquele que aceita e, por vezes, até exige discordância. (TAVARES, 2021)
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Pouco mais que cinco da manhã. Fátima, muito mais que secretária, uma guardiã, anuncia a notícia mais triste que poderia dar.

Estou na UFRJ, quinze anos antes. Desamparado, começo de mestrado. Psicólogo, cercado de cientistas. Querendo me emaranhar nas Reduções Objetivas da consciência quântica. Na saída da aula, pergunto a ele algo sobre esse tema. Com olhos tão generosos quanto em brasa, ele dispara o que mudaria minha vida: Você tem interesse nisso? Então marca uma hora com a minha secretária.

Muitas conversas: Penrose, Leibniz, Deleuze – seria possível mônadas quânticas? Uma orientação se instala, uma amizade embrionária.

Defesa de mestrado. Ele assume publicamente: Eu não entendo o Nelson. De fato, ele aceita articular comigo a consciência quântica de Penrose com a filosofia da diferença de Deleuze, sem estar totalmente confortável. Mas os grandes pensadores não se intimidam com o desconforto. Ao final da defesa, dá um riso amigável, Tudo certo, vamos marcar de combinar seus próximos passos.

Ele se surpreende com meu desejo de explicitar o ocultismo no doutorado. Mas nunca arrefece. Problematiza o título estranho, mas acaba por aceitar.

Defesa de doutorado. Alucinado por minhas ideias, convido um cosmólogo, um antropólogo, um filósofo, um matemático e uma biológa. Nenhum aluno suportaria essa ousadia sozinho. Mas tenho ele ao meu lado. Muitas discussões, polêmicas, até más vontades, mas, sobretudo, estranhamentos. Afinal, aprovado. Conseguimos, mais uma vez. Sempre cercado de bruxos, mas sem acreditar no espírito. No entanto, ele é, dentre nós, o maior realizador de impossíveis.

Os bruxos chegam em torno do grupo acerca da consciência. Ele acolhe, comsorriso amigável e exigência, algum espanto. Sabemos que isso o co-move. Ele sempre defende a consciência quântica, a despeito das inúmeras pedradas: dos físicos, dos filósofos, dos psicólogos, daqueles que se acostumam.

Ele não entende o ataque e boicote de certos colegas. Eu arrisco que, em função de simplesmente estarem perto dele, a mediocridade de alguns torna-se mais explícita. Isso eles não suportam. Ele não quer acreditar. Traz consigo uma tamanha fé na humanidade que, em muitos momentos, acaba por cultivar em si certa ingenuidade.

Peço o prefácio para o livro oriundo da tese “Ontologia Onírica”. Mais um presente estranho seu, nas últimas linhas, que também constam na contracapa: “Job estabelece em sua Ontologia Onírica os limites da crítica pós-moderna” (PINGUELLI, 2013, p. 14).

Pós-doutorado. Ele me convida para ser monitor de suas disciplinas Teoria do conhecimento científico. Aceito com alegria. Quando ele não está, dou minhas primeiras aulas na UFRJ.

Realizamos o Encontro Internacional Transdisciplinar da Consciência, que teria uma continuação. Casa da Ciência cheia. O ano é 2017. Anuncio publicamente o vórtex, minha criação, até então a mais importante, impossível sem sua colaboração. Meditamos coletivamente. Mas ele conhece seus limites. Sai antes. Perguntaria, mais tarde, como havia sido.

Sofremos com a burocracia para a publicação do livro resultante do Encontro. Eu me responsabilizo. Ele não diz nada, ligando mais tarde dizendo que resolveu o problema. Pergunto como. Ele responde com sabedoria misteriosa, Tem certas coisas que é melhor pedir pros inimigos.

A co-criação do PPE, HCTE, as disciplinas Teoria do conhecimento científico I, II e III, os livros oriundos delas, minha tese e livro subsequente, o Encontro, seu registro em livro: ele é um dos maiores nomes da interdisciplinaridade do país, entre outros inúmeros feitos.

A política no Brasil torna-se, então, assustadora. Ele lembra quando ia visitar amigos na cadeia durante a ditadura, sem saber seconseguiria voltar. Mas não se cala, mantendo as críticas em sala de aula, artigos, entrevistas, palestras.

Mudo para o Flamengo. Apartamento maior, devires festeiros me povoam. Ele sempre vem. Uma vez, alquebrado pelo tratamento médico. Na última vez, melhor, aparece então o Luiz, sem as couraças das dores: celebremos.

Pandemia. Sem cortar os cabelos, os esconde usando o boné do Partido Comunista comprado na China. Aparece em várias telas do país transmitido pelo Jornal Nacional: ele critica a políticaenergética do governo com o tal boné, que protege suas ideias.

Penrose ganha o Nobel. Ligo imediatamente para ele. Como de costume, ele dispensa comprimentos, como dispensará, depois, despedidas. Ele já sabe da premiação. Mais tarde, escreveremos juntos um artigo sobre o Nobel e a obra de Penrose.

As aulas são pelo Zoom. Seu filho chega, incomodado com a camisa rasgada do pai. Ele ri, dizendo que não tem problema.

Ele participa dos cursos online que ofereço. Sua chancela é sempre um presente, suas aulas, um deleite para todos.

Sua saúde piora. Mesmo sentindo-se mal na madrugada, ele liga para os familiares apenas pela manhã, gerando uma terna revolta neles. Então, na última internação, ele evanesce em mônadas quânticas. Choram Marias e Clarices.

A notícia dada por Fátima traz muita tristeza, mas não é abrupta -ele, de certo modo, soube nos preparar.

Estou sem sua figura no horizonte, pela primeira vez em quinze anos. No entanto, suas mônadas ressoam em cada ideia mais ousada, em cada insistência de liberdade, em cada acolhida para quem solicita uma ajuda, querendo consolidar seu pensamento. Ele (re)nasce no mesmo ano que Caetano, Gil, Milton, Paulinho da Viola. Somos frutos do país possível que eles cultivam.

Leio uma notícia acerca de um novo e curioso resultado da mecânica quântica. Penso logo em ligar para ele, querendo comentar. Desamparado, conscientizo-me que ele não pode mais me atender, mas de um modo muito diferente de quando eu o encontrei pela primeira vez: agora, o desamparo vem junto a uma capacidade de transduzí-lo em algo maior, potente e criativo.

Converso com ele, de outro jeito, sobre a notícia, sobre este texto que escrevo agora.

No lançamento de suas memórias póstumas, Peregrino o elogia, dizendo que ele fazia questão de não abandonar nenhum companheiro, por maior que fosse o problema. O que já sabíamos.

Mas ainda realizaríamos juntos mais um impossível.

Mudo outra vez. No novo prédio, levo caixas contendo meu primeiro romance, que ele nunca viu. Alguém me pergunta educadamente meu andar. Respondo a quem perguntou e vejo então seu filho e netos. Sua ex-mulher também mora lá. Subo, surpreendido enquanto novo vizinho de sua família.

Ele sorri.
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Referências
PINGUELLI ROSA, L. Prefácio. In:JOB, N. Confluências entre magia, filosofia, ciência e arte: a Ontologia Onírica. Rio de Janeiro: Cassará, 2013.
TAVARES, G. M. Atlas do corpo e da imaginação: teoria, fragmentos e imagens. Porto Alegre/São Paulo: Dublinense, 2021.
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Publicado originalmente na Revista Scientiarum História – Uma Rosa para Pinguelli