Ciência, tecnologia e sociedade

Contra a burocracia na pesquisa

No quarto e quinto mandato como diretor da Coppe, Pinguelli empunhou a bandeira da resistência às regras burocráticas que emperram a pesquisa nas universidades. Como gestor, ele se revoltava com as dificuldades impostas aos processos de licitação pela Lei nº 8.666. “Uma lei burríssima, cultuada por pseudomoralistas para a moralização do serviço público. Obriga você a pagar o dobro por uma canela esferográfica, por meio de licitação, do que se comprasse em uma papelaria. E a caneta em geral não escreve direito, falha muito, pois na licitação ganha a menos cara entre as ofertadas (todas caríssimas), não importa se escreve bem ou não”, desabafou Pinguelli em sua autobiografia, lembrando a licitação para a construção do conjunto de laboratórios I-2000.

Na ocasião, descreveu o físico, quando foram abertos os envelopes com propostas para a obra, a comissão encarregada da seleção percebeu que todas as ofertas eram semelhantes e tinham valor acima do orçamento máximo estabelecido. Pinguelli cancelou o processo licitatório e pediu a Petrobras, patrocinadora da obra, que escolhesse o construtor. O custo da obra caiu à metade.

Em 2008, o Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu o acórdão 2731/2008, que estabelecia regras sobre os recursos advindos das fundações de apoio às universidades. Pinguelli foi um dos gestores de instituições que mais se mobilizou para enfrentar o que considerava uma camisa de força burocrática. Em fevereiro de 2009, ele atacou o documento em artigo para a Folha de São Paulo: “Estabeleceu-se no país uma volúpia por regulamentos, como se todos fossem ladrões, mas pouco se faz para punir os verdadeiros ladrões de colarinho-branco. Em reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência com o presidente da República e os ministros da Educação (MEC) e da Ciência e Tecnologia (MCT), critiquei esse emperramento do setor público. O presidente Lula me deu razão. Mas a burocracia não segue o que diz o presidente.”

Fernando Peregrino recorda a reunião citada por Pinguelli: “Fui com ele à audiência com o Ministro, que em termos práticos lavou as mãos, dizendo que era do TCU a responsabilidade, e que no MEC esse assunto estava com sua Secretaria de Ensino Superior, Maria Paula Dallari”. Pinguelli e Peregrino procuraram Dallari, professora da USP, no seu gabinete. Lá, ela mostrou o quanto desconfiava das fundações de apoio à pesquisa universitária:

– Pingueli, essas fundações não são transparentes! Ninguém sabe nada sobre o que fazem. Não publicam nada!”

Pinguelli então pediu a Peregrino que mostrasse o site da Coppetec, a fundação de apoio à pesquisa da Coppe, que Fernando ainda hoje dirige. “Abri a página da Coppetec e mostrei as normas, projetos e tudo que mais poderia representar a transparência de uma fundação. Ela se engasgou. Mais tarde soube que passou a defender o modelo das fundações de apoio”, conta Fernando Peregrino, em depoimento para o site.

Pouco tempo depois, Pinguelli e Peregrino foram convocados ao TCU pelo relator do acórdão, ministro Aroldo Cedraz. Na reunião presidida por Cedraz, repleta de técnicos e assessores, Pinguelli a certa hora cansou de ouvir os técnicos e o ministro repetirem números de leis e normas. Enfadado, levantou-se e disse:

– Não conheço esses números e leis que vocês estão falando. De número eu conheço bem o 458, que é o número do ônibus que passa na minha universidade. Vim aqui para tentar reduzir a burocracia na pesquisa. Agora tenho de ir embora, vou dar minha aula. Tenho de pegar meu voo, meus alunos estão me esperando. “Ele pegou a mochila, colocou no ombro, e saiu… Perplexidade geral. Esse era o Pinguelli: irreverente, contundente nas suas críticas, mas profundamente verdadeiro”, lembra Peregrino.

A luta estava apenas começando. Em 2013, Pinguelli Rosa tornou-se o mais vocal adversário da “Coletânea de Entendimentos”, documento da Controladoria Geral da União (CGU) com orientações para a gestão universitária. O texto, que Pinguelli logo apelidou de “Cartilha da CGU”, reunia 122 perguntas e respostas formuladas por auditores. Em 25 de fevereiro, Pinguelli assinou um artigo no Globo intitulado “Um almoço para Einstein” que lançou o debate na grande imprensa. No artigo, Pinguelli classificava o documento de autoritário, stalinista e considerava que ele feria a autonomia universitária.

“Se a cartilha for seguida à risca, nenhum professor em dedicação exclusiva poderá possuir ações de empresas, nem mesmo da Petrobras ou do Banco do Brasil, o que é um absurdo. Também não poderá participar de sociedade privada, logo os pesquisadores terão que abdicar de sociedades científicas, como a SBPC, e de outras, como o Clube de Engenharia”, escreveu Pinguelli. No artigo, o diretor da Coppe lembrava a visita de Albert Einstein em 1925 a Escola Politécnica e ao Museu Nacional, e observava: “Oferecer um almoço na visita de Einstein à Universidade hoje poderia ser considerado um ato ilícito, segundo a cartilha”.

“Pelo Acórdão do TCU, era proibido as fundações receberem os recursos dos projetos diretamente em suas contas. Os recursos tinham obrigatoriamente de passar pela conta única da Universidade apoiada. Isso esterilizava os recursos privados, pois eles se tornariam públicos ao entrarem pela conta única, tornando-se parte do orçamento público e ficando sujeitos a todas as amarras legais”, explica Peregrino.

Em resposta ao texto de Pinguelli, o ministro da Controladoria Geral, Jorge Hage, classificou o artigo de “primário” e disse que o diretor da Coppe queria defender um colega afastado por improbidade. Os dois chegaram a discutir ao vivo em um debate na rádio CBN.

As determinações do TCU encontraram resistência em vários estados. No Rio de Janeiro, mais de 400 pessoas compareceram a um ato na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro. A certa altura, decidido a tornar o tema acessível a mais pessoas, Pinguelli teve a ideia de montar uma peça de teatro sobre o assunto. Peregrino convidou a atriz Jalusa Barcelos para a direção; o texto ficou a cargo do autor Clóvis Levi. A peça Burocracia contra a Ciência ou Suicídio a la carte foi apresentada em dezembro de 2013.

Em outra ocasião, Peregrino e Pinguelli foram ao Congresso Nacional para conversar com parlamentares e tentar obter legislação mais favorável às fundações. Os dois buscaram incluir um artigo em uma medida provisória que tramitava na Casa e tratava de planos de carreira de funcionários federais, entre outros temas.

Peregrino lembra o verdadeiro corpo-a-corpo dos dois: “Estávamos atrás de um cercado no plenário que nos impedia de ter contato com os parlamentares. Aproveitamos o tumulto causado por uma invasão de bombeiros que manifestavam sua revolta contra punições recentes e pulamos o cercado. Falamos com os líderes dos partidos para votar na emenda que queríamos. O relator, por exemplo, não tinha incluído os projetos de ensino na redação. No dia seguinte, o presidente da Câmara perguntou a um deputado: ‘Vocês mudaram a proposta do governo com ajuda daquele professor de cabeça branca que estava pedindo voto em plenário?’ Ele se referia ao Pinguelli, que junto comigo foi de deputado em deputado para pedir voto”, recorda.

Sancionada em setembro de 2013, a lei 12863/13 liberou o dinheiro resultante de projetos realizados por fundações desse caminho burocrático. “Ela deveria ser chamada de Lei Pinguelli”, conta Peregrino.

Houve uma discriminação contra as universidades federais, onde se realiza grande parte da pesquisa no Brasil. Se não reagirmos, outras restrições virão, até que se proíba tudo que não seja a rotina da burocracia “

Pinguelli

Contra a burocracia na pesquisa

No quarto e quinto mandato como diretor da Coppe, Pinguelli empunhou a bandeira da resistência às regras burocráticas que emperram a pesquisa nas universidades. Como gestor, ele se revoltava com as dificuldades impostas aos processos de licitação pela Lei nº 8.666. “Uma lei burríssima, cultuada por pseudomoralistas para a moralização do serviço público. Obriga você a pagar o dobro por uma canela esferográfica, por meio de licitação, do que se comprasse em uma papelaria. E a caneta em geral não escreve direito, falha muito, pois na licitação ganha a menos cara entre as ofertadas (todas caríssimas), não importa se escreve bem ou não”, desabafou Pinguelli em sua autobiografia, lembrando a licitação para a construção do conjunto de laboratórios I-2000.

Na ocasião, descreveu o físico, quando foram abertos os envelopes com propostas para a obra, a comissão encarregada da seleção percebeu que todas as ofertas eram semelhantes e tinham valor acima do orçamento máximo estabelecido. Pinguelli cancelou o processo licitatório e pediu a Petrobras, patrocinadora da obra, que escolhesse o construtor. O custo da obra caiu à metade.

Em 2008, o Tribunal de Contas da União (TCU) emitiu o acórdão 2731/2008, que estabelecia regras sobre os recursos advindos das fundações de apoio às universidades. Pinguelli foi um dos gestores de instituições que mais se mobilizou para enfrentar o que considerava uma camisa de força burocrática. Em fevereiro de 2009, ele atacou o documento em artigo para a Folha de São Paulo: “Estabeleceu-se no país uma volúpia por regulamentos, como se todos fossem ladrões, mas pouco se faz para punir os verdadeiros ladrões de colarinho-branco. Em reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência com o presidente da República e os ministros da Educação (MEC) e da Ciência e Tecnologia (MCT), critiquei esse emperramento do setor público. O presidente Lula me deu razão. Mas a burocracia não segue o que diz o presidente.”

Fernando Peregrino recorda a reunião citada por Pinguelli: “Fui com ele à audiência com o Ministro, que em termos práticos lavou as mãos, dizendo que era do TCU a responsabilidade, e que no MEC esse assunto estava com sua Secretaria de Ensino Superior, Maria Paula Dallari”. Pinguelli e Peregrino procuraram Dallari, professora da USP, no seu gabinete. Lá, ela mostrou o quanto desconfiava das fundações de apoio à pesquisa universitária:

– Pingueli, essas fundações não são transparentes! Ninguém sabe nada sobre o que fazem. Não publicam nada!”

Pinguelli então pediu a Peregrino que mostrasse o site da Coppetec, a fundação de apoio à pesquisa da Coppe, que Fernando ainda hoje dirige. “Abri a página da Coppetec e mostrei as normas, projetos e tudo que mais poderia representar a transparência de uma fundação. Ela se engasgou. Mais tarde soube que passou a defender o modelo das fundações de apoio”, conta Fernando Peregrino, em depoimento para o site.

Pouco tempo depois, Pinguelli e Peregrino foram convocados ao TCU pelo relator do acórdão, ministro Aroldo Cedraz. Na reunião presidida por Cedraz, repleta de técnicos e assessores, Pinguelli a certa hora cansou de ouvir os técnicos e o ministro repetirem números de leis e normas. Enfadado, levantou-se e disse:

– Não conheço esses números e leis que vocês estão falando. De número eu conheço bem o 458, que é o número do ônibus que passa na minha universidade. Vim aqui para tentar reduzir a burocracia na pesquisa. Agora tenho de ir embora, vou dar minha aula. Tenho de pegar meu voo, meus alunos estão me esperando.

“Ele pegou a mochila, colocou no ombro, e saiu… Perplexidade geral. Esse era o Pinguelli: irreverente, contundente nas suas críticas, mas profundamente verdadeiro”, lembra Peregrino.

A luta estava apenas começando. Em 2013, Pinguelli Rosa tornou-se o mais vocal adversário da “Coletânea de Entendimentos”, documento da Controladoria Geral da União (CGU) com orientações para a gestão universitária. O texto, que Pinguelli logo apelidou de “Cartilha da CGU”, reunia 122 perguntas e respostas formuladas por auditores. Em 25 de fevereiro, Pinguelli assinou um artigo no Globo intitulado “Um almoço para Einstein” que lançou o debate na grande imprensa. No artigo, Pinguelli classificava o documento de autoritário, stalinista e considerava que ele feria a autonomia universitária.

“Se a cartilha for seguida à risca, nenhum professor em dedicação exclusiva poderá possuir ações de empresas, nem mesmo da Petrobras ou do Banco do Brasil, o que é um absurdo. Também não poderá participar de sociedade privada, logo os pesquisadores terão que abdicar de sociedades científicas, como a SBPC, e de outras, como o Clube de Engenharia”, escreveu Pinguelli. No artigo, o diretor da Coppe lembrava a visita de Albert Einstein em 1925 a Escola Politécnica e ao Museu Nacional, e observava: “Oferecer um almoço na visita de Einstein à Universidade hoje poderia ser considerado um ato ilícito, segundo a cartilha”.

“Pelo Acórdão do TCU, era proibido as fundações receberem os recursos dos projetos diretamente em suas contas. Os recursos tinham obrigatoriamente de passar pela conta única da Universidade apoiada. Isso esterilizava os recursos privados, pois eles se tornariam públicos ao entrarem pela conta única, tornando-se parte do orçamento público e ficando sujeitos a todas as amarras legais”, explica Peregrino.

Em resposta ao texto de Pinguelli, o ministro da Controladoria Geral, Jorge Hage, classificou o artigo de “primário” e disse que o diretor da Coppe queria defender um colega afastado por improbidade. Os dois chegaram a discutir ao vivo em um debate na rádio CBN.

As determinações do TCU encontraram resistência em vários estados. No Rio de Janeiro, mais de 400 pessoas compareceram a um ato na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro. A certa altura, decidido a tornar o tema acessível a mais pessoas, Pinguelli teve a ideia de montar uma peça de teatro sobre o assunto. Peregrino convidou a atriz Jalusa Barcelos para a direção; o texto ficou a cargo do autor Clóvis Levi. A peça Burocracia contra a Ciência ou Suicídio a la carte foi apresentada em dezembro de 2013.

Em outra ocasião, Peregrino e Pinguelli foram ao Congresso Nacional para conversar com parlamentares e tentar obter legislação mais favorável às fundações. Os dois buscaram incluir um artigo em uma medida provisória que tramitava na Casa e tratava de planos de carreira de funcionários federais, entre outros temas.

Peregrino lembra o verdadeiro corpo-a-corpo dos dois: “Estávamos atrás de um cercado no plenário que nos impedia de ter contato com os parlamentares. Aproveitamos o tumulto causado por uma invasão de bombeiros que manifestavam sua revolta contra punições recentes e pulamos o cercado. Falamos com os líderes dos partidos para votar na emenda que queríamos. O relator, por exemplo, não tinha incluído os projetos de ensino na redação. No dia seguinte, o presidente da Câmara perguntou a um deputado: ‘Vocês mudaram a proposta do governo com ajuda daquele professor de cabeça branca que estava pedindo voto em plenário?’ Ele se referia ao Pinguelli, que junto comigo foi de deputado em deputado para pedir voto”, recorda.

Sancionada em setembro de 2013, a lei 12863/13 liberou o dinheiro resultante de projetos realizados por fundações desse caminho burocrático. “Ela deveria ser chamada de Lei Pinguelli”, conta Peregrino.

Houve uma discriminação contra as universidades federais, onde se realiza grande parte da pesquisa no Brasil. Se não reagirmos, outras restrições virão, até que se proíba tudo que não seja a rotina da burocracia “

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