Pinguelli e eu: fragmentos da história de um cidadão do mundo

por Fernando Peregrino, diretor-executivo da Fundação Coppetec e presidente do Confies

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Este depoimento livre reflete uma história de projetos e amizade entre o professor Pinguelli e o autor. Os dados podem ali e acolá merecer correções, mas preferi deixar  que as recordações sobre esta  história de quase 40 anos de amizade  fluíssem, sem que nada se perdesse. A história de Luiz Pinguelli Rosa cruzou com a minha em muitos momentos desde 1985. Conheci Pinguelli quando éramos do Conselho Deliberativo do CNPq, em 1985. O conselho fora ressuscitado recentemente e era formado por 15 membros, na maioria oriundos da comunidade acadêmica. Pinguelli era um deles.

Eu era o único conselheiro eleito, representante de todos os servidores do CNPq. Quando fui colocado em disponibilidade (quase demissão) pelo governo Collor, em pleno exercício do mandato, ele não titubeou e saiu em minha defesa. Pressionou o presidente do CNPq a rever o ato, que representava uma clara retaliação da direção pelas minhas posições críticas a uma gestão pouco transparente. Logo os demais cientistas do Conselho se somaram à minha defesa, alinhados ao Pinguelli.

Ali ele demonstrou coragem e ausência de corporativismo.. Fui defendido por um amigo dele, o conhecido advogado Herman Baeta, famoso presidente da OAB, conhecido defensor dos direitos humanos durante a ditadura.
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Cargo: alter ego

Ao fim do nosso mandato no Conselho Deliberativo do CNPq, voltando ao Rio depois da última reunião do órgão, recebi à noite uma ligação do Pinguelli:

– Peregrino, o reitor, Nelson Maculan, me convidou para ser o coordenador do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Quero lhe convidar para ser meu superintendente, meu alter ego .

Estranhei o emprego da palavra alter ego, mas logo entendi: ele queria demonstrar que já tinha razões para ter confiança em mim e indicar que compartilharíamos grandes projetos, sobre os quais falamos rapidamente naquele  telefonema. Esse convite, para mim, demonstrou um segundo valor: a confiança. Confiança que ficaria cada vez maior, à medida em que eu  fazia o Fórum funcionar e o apoiava em projetos estratégicos.
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A primeira grande obra: um hospício de 1848

Foi assim que, praticamente sem dinheiro, apenas com 100 mil reais concedidos pelo Reitor, Maculan, começamos o primeiro projeto: a obra de recuperação do Palácio Universitário, construído em 1848 para ser um hospício e inaugurado em 1852 por D. Pedro II. A edificação foi considerada o “palácio neoclássico mais belo do país” segundo o professor e crítico de artes na época, Clarival Prado Valadares. O Hospício Pedro II acolheu por várias vezes o famoso escritor Lima Barreto, autor da conhecida obra Triste Fim de Policarpo Quaresma, uma crítica à sociedade urbana de linha pre-modernista. Pinguelli era atraído por esses fatos históricos e chegou a escrever sobre Policarpo em um artigo de jornal, em que discorria sobre sua luta contra a burocracia.

Posteriormente, o prédio se transformou na sede da Universidade do Brasil e, a seguir, da UFRJ, em 1949. Foi palco de eventos da bossa nova e de resistência à ditadura.

Quando chegamos ao Fórum, o cenário era de guerra. Um lustre do salão dourado, belíssima obra de arte, estava no chão todo quebrado; o salão Moniz Aragão estava sem lâmpadas e sujo; havia corredores apagados, paredes estragadas …. Tudo estava mal-conservado.

Logo Pinguelli passou a mim a tarefa de empreender a obra, que só foi possível graças a seu apoio, e da arquiteta Lucinda Caetano, cujo mestrado tinha sido exatamente sobre o Palácio. Pinguelli delegava, mas fazia questão de acompanhar a reforma e vibrava a cada conquista.

Foi uma grande emoção realizarmos esse projeto, não apenas pelo que representou, historicamente, como tecnicamente. Imaginem uma parede de mais de 1,2 metro de espessura, feita de pedras irregulares e grandes, ser perfurada com uma broca para passar um tubo de 1 cm de diâmetro para o ar-condicionado.  Isso dá uma ideia da aventura que foi dar conta da recuperação do prédio.

Sem apoio de qualquer empresa de engenharia para realizar essas obras (não tínhamos orçamento para contratar uma), pedimos ao reitor a cessão de cerca de 30 operários da UFRJ para trabalhar na recuperação. Maculan não hesitou e cedeu os funcionários. Seu Adilson, o mestre de obras, comandou a tropa. Mas, primeiramente, reunimos todos no salão Moniz Aragão e fizemos uma preleção sobre o que representaria uma obra naquele prédio histórico.

A reforma não seria possível sem a criatividade dos operários. As portas e esquadrias estavam cobertas por pelo menos seis mãos  de tinta, sobre a outra. A pesquisa histórica da Lucinda indicava que, originalmente, elas eram sem pintura, feitas de madeira sucupira. Assim os operários, com maçarico, queimavam uma a uma as camadas de tinta, até que aparecesse a linda e imponente peça de madeira, nua como em 1848. Eles também criaram uma ferramenta infalível para remover a tinta dos recantos das portas:  cacos de vidro. Hoje pode-se afirmar – literalmente – que a obra daquele Palácio foi feita com as próprias mãos dos operários.

As goteiras foram outro problema de engenharia. Além do telhado estar envelhecido, as folhas das árvores ao seu redor entupiam as calhas  e os buzinotes. Para seguir o que prescrevia a engenharia, deveríamos mudar o telhado e fazer novas calhas, mais largas. Não tínhamos dinheiro. Foi aí que Pinguelli inventou que mandássemos um jovem periodicamente subir no telhado (tinha de ser magro e pequeno, pois deveria ser leve para não quebrar as telhas ao pisar nelas). Problema resolvido, com muito pouco dinheiro e muita eficiência.

Pinguelli sentia orgulho. Mas precisávamos de uma ajudinha financeira para os operários almoçarem. Assim, o dinheiro recolhido dos fiéis na Capela São Pedro de Alcântara, que era parte do Palácio, foi usado para dar uma pequena contribuição aos que trabalhavam no resgate do complexo do Palácio Universitário.

Ao final da obra, Pinguelli homenageou a todos que participaram do projeto  com a instalação de uma placa de acrílico  onde foram gravados, em ordem alfabética, os nomes de todos os operários, o da arquiteta Lucinda Caetano e o meu próprio. Assim, demonstrou gratidão e reconhecimento aos que haviam assumido o desafio proposto dois anos antes. Era essa maneira de dirigir projetos que o tornava singular. Reconhecimento aos que o ajudavam, sobretudo aos mais simples. Infelizmente, essa placa ainda não foi encontrada.

Em 3 de março de 2022, no foyer do Fórum, local por onde ele passou tantas vezes, o corpo de Pinguelli foi velado, 34 anos depois do início de sua gestão como coordenador. Infelizmente, como de costume, poucos destacaram sua jornada pela conservação da memória e da cultura do país.
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Movimento pela ética na política e outras iniciativas

A sede do Fórum abrigou muitas iniciativas realizadas sob a liderança de Pinguelli.  Começou ali, por exemplo, o Movimento Pela Ética na Política de Herbert de Souza, o Betinho, diretor do IBASE. Também nasceu lá o embrião da campanha que derrubou Collor de Mello.  Outra iniciativa de peso foi a de promover reuniões de professores da UFRJ com a secretária de Estado de Educação do governo Brizola, professora Maria Yeda Linhares, para promover um programa de atualização de professores em ciências. Esse era e ainda é um dos problemas mais graves da rede de ensino estadual: falta de professores de boa qualidade em Ciências e Matemática. Anos depois, a CAPES instituiu um programa de fomento para dar conta dessa lacuna no sistema de ensino básico do país.

Nessa época, o Museu Nacional, única unidade acadêmica do Fórum, carecia de um lugar para colocar seu acervo. Havia um problema de captação de recursos e de viabilização do espaço para construção do novo prédio anexo. Pinguelli exerceu grande papel nesse episódio.

Por essas e por outras, Pingueli se realizaria como empreendedor mesmo distante da instituição a qual estava mais ligado, a COPPE.
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Parque tecnológico e incubadora

No início da década de 1980, eu estava no CNPq, como integrante do programa de inovação tecnológica que promovia a criação dos NITs (Núcleo de Inovação Tecnológica). Um dos NITs estava implantado na COPPETEC, sob a direção de Flavio Grynpzan.

Foi nessa época que eu e Mauricio Guedes, da COPPETEC, patrocinados pela OEA/FINEP, realizamos  uma viagem aos EUA para conhecer os parques e incubadoras daquele país, fenômeno que estava se expandindo por aquelas terras.

Na época poucos aqui conheciam as alternativas de fomento através da ligação da universidade com as empresas. Percorremos várias dessas instituições, desde o Research Triangle Park, na Carolina do Norte, à Incubadora da Universidade de Maryland, entre outros. Quando voltamos, começamos a implementar projetos similares no Brasil. Fui convidado pelo professor Jorge Guimarães, então diretor do Instituto de Bioquímica da UFRJ, e pelo professor Paes de Carvalho, a empreender a criação do polo de biotecnologia e de sua incubadora. Planejamos,  com ajuda de colegas do CNPq, Geraldo Prado e Barbara, a criação do Pólo Bio-Rio, um parque de empresas de biotecnologia, em 1986. O cientista Carlos Chagas supervisionou  cada passo do projeto.

Certo dia, fui levado pelo Maurício Guedes ao Pinguelli, na época diretor da COPPE. Quando ele soube do projeto da incubadora e do parque que estávamos fazendo ao lado do Centro de Ciências da Saúde, indagou-me:

– Peregrino, por que não fazemos esse parque aqui na COPPE?

Pouco tempo depois, nasceriam o Parque Tecnológico da UFRJ, conduzido magistralmente pelo Mauricio, e o Polo de Biotecnologia da UFRJ e sua fundação Bio-Rio, liderada por Carlos Chagas Filho. Pinguelli impulsionou também a gênese do Parque Tecnológico do Fundão, que viria a ser o mais importante do país. Posteriormente, em 1994, seria criada a incubadora da COPPE.
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O I.2000

A partir da minha temporada de trabalho no Fórum, Pinguelli passou a me convidar para participar de suas administrações seguintes, assim como para os projetos especiais. Ele não media esforços para isso. Embora eu fosse funcionário do CNPq/MCT, insistiu com o ministro da Ciência e Tecnologia do governo Collor, José      Goldemberg, para que eu fosse liberado sem passar pela enorme burocracia de cessão de um servidor do CNPq para uma universidade. Mas ele sempre conseguia. Assim demos início às tratativas      para o Projeto do I-2000.

Inicialmente, cogitava-se fazer outro prédio, ou usar uma obra inacabada da Petrobras, perto do Cenpes. Não indo adiante a ideia, Pinguelli decidiu, contra muitos, fazer a obra dentro do Bloco I do complexo do CT. Esse bloco tinha 270 metros de comprimento, 27 de altura e 30 metros de largura. Ele me deu o papel de coordenador. O dinheiro era da Petrobras, com apoio do presidente Joel Rennó, e depois da FINEP e do MEC.

A primeira tentativa de escolher a empresa que faria o projeto falhou por inexperiência nossa. Pinguelli deu a ideia de pedir ajuda da própria Petrobras. O arquiteto Massoud apresentou um projeto construtivo moderno, simples, prático e rápido para o interior do Bloco I, ocupado pelas instalações precárias dos pesquisadores.

A dificuldade principal era fazer que os pesquisadores acreditassem que o projeto seria uma realidade, já que seus laboratórios deveriam ser demolidos. Era preciso remover cada laboratório para outro espaço improvisado enquanto a obra seguia.  Havia no ar o temor de que tudo fosse ficar pior, incompleto. O fator confiança era fundamental nessa empreitada.

Esse dilema permaneceu até que as primeiras operações deram certo. A arquitetura do Massoud era um fator de atração, pois elevava a autoestima dos pesquisadores. O padrão I2000 revolucionou o ambiente do Centro de Tecnologia, cujo prédio datava de 1950.  Foram feitos 10.000 metros quadrados de laboratórios em arquitetura moderna, que estabeleceu o padrão para  todas as reformas do CT que vieram depois, pelas mãos de uma jovem, então estagiária, a arquiteta Fernanda Oliveira.

Em dois anos conseguimos. Conseguimos resolver todos os conflitos de áreas a destinar a um ou a outro.  Como dirigente, Pinguelli sempre deu respaldo a seus colaboradores, nunca tergiversou, foi leal como poucos. Demonstrava, assim, que também era um executivo, não apenas um cientista. Aliás, outra semelhança com Darcy Ribeiro. Brizola dizia que seu vice-governador, Darcy não era apenas um intelectual, era o melhor executivo que já tinha conhecido. Outro traço comum entre os dois.
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CT 2: “Que obra é aquela, Peregrino?” 

Quando assumi, pela segunda vez, a direção da Coppetec,  resolvi colher o apoio da diretoria da COPPE para investir uma poupança de alguns milhões, acumulados por aplicações financeiras no período da diretora Angela Uller, na construção de uma sede. Não era possível que uma fundação tão importante como a nossa tivesse seus funcionários trabalhando em pequenos cubículos no Bloco H, em instalações emprestadas.

Havia um projeto de arquitetura de expansão do CT literalmente na gaveta, o do CT2, cujo prédio principal estava projetado para ser a sede da Fundação.      O CT tinha que se expandir, o I2000 não mais cabia nas instalações apoiadas pelo boom da Petrobras, que financiava apenas laboratórios.

A obra do CT2 começou sem que ele desse muita atenção. Como sempre, Pinguelli confiava nas coisas que eu fazia e apenas fiscalizava em caso de necessidade. O projeto de arquitetura era da estagiária do I2000, a Fernanda Oliveira.

Pinguelli se guiava pela máxima de que a Universidade padecia quase sempre do mal de falar e não fazer. Portanto, se alguém fizesse algo, deveria ser apoiado. De repente, em pouco tempo, a fachada de concreto do CT2 ergueu-se e apareceu na paisagem perto do Grêmio, onde sempre íamos almoçar. No dia em que os operários retiraram as formas do concreto, Pinguelli admirou-se ao olhar para o lado esquerdo, na volta do almoço:

– Peregrino, que prédio é esse?

Primeiro eu ri:

– Pinguelli, esse prédio será a sede da COPPETEC, construímos com recurso da fundação, lembra?

– Como? –  ele indagou, espantado. E decidiu:

– A diretoria precisa de um espaço lá. Vamos vir para cá.  Vai ficar muito bonito.

E foi o que aconteceu: metade da diretoria se mudou para o CT2, dividindo o espaço com a Coppetec, e a outra metade ficou no famoso Bloco G. Refizemos o lay out para acomodar todos.

Pinguelli gostava tanto de ver as coisas acontecerem que o que mais apreciava era ser chamado para visitar uma obra. Largava a reunião que fosse. Era físico, mas tinha alma de um engenheiro. Sentia a necessidade de ser um construtor. Não à toa, se sentia em casa quando frequentava o Clube de Engenharia.
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Privatizações 

Pinguelli sempre teve na cabeça a importância do papel do Estado no desenvolvimento do País, talvez pela sua origem militar. Era um getulista-raiz.  A partir de 1989, o mundo sofreu o impacto da onda neoliberal deflagrada pelo Consenso de Washington, uma reunião dos países líderes que recomendou aos demais que se desfizessem de suas empresas estatais e abrissem seus mercados paraempresas estrangeiras. O Brasil começou o processo de desindustrialização, ou reprimarização,      a que hoje assistimos. A ascensão de Colllor representou a nossa adesão ao Consenso,      iniciando o processo de venda de nossas estatais,  contra o qual Pinguelli, nós,  e outros brasileiros se levantaram.

A venda da Vale do Rio Doce despertou a reação da COPPE. Afinal, a engenharia brasileira sofreria com a importação de projetos e tecnologias. Com visão estratégica, Pinguelli inseriu a COPPE no contexto do debate nacional. Uma visão que poucos tinham.  Miro Teixeira, um deputado nacionalista, conseguiu do presidente da Câmara dos Deputados,  Luiz Eduardo Magalhães,  a criação de um Grupo de Apoio Técnico (GAT) à comissão externa que avaliava o processo de venda. Éramos 22 técnicos de várias origens. Pinguelli coordenava e eu era o coordenador executivo, com presença fundamental de Sebastião Soares, engenheiro do BNDES e profundo conhecedor da questão do desenvolvimento nacional. Tida como uma grande empresa logística e detentora de minas estratégicas, a Vale era mais que um ministério. Com uma carteira de minas de ouro, prata, ferro e bauxita, entre outros minérios, a Vale seria vendida sem sequer ter a extensão dessas jazidas confirmadas. Tudo era apressado.

O BNDES, coordenador do processo de venda, disponibilizou um data room com todos os dados sobre a Vale para os compradores, ao qual também tivemos acesso. Nossos especialistas de geologia descobriram que a medição de uma mina localizada em Carajás, ainda não havia sido concluída e estava incluída no patrimônio a ser vendido. Era ouro e prata. Pinguelli denunciou estridentemente esse caso, afinal um consórcio formado pela Anglo American despontava como comprador, e sua broker Merril Lynch havia participado da modelagem do processo de venda.

O conflito de interesse era flagrante! Dava-se com uma mão e pegava-se com a outra. Houve até passeata contra o leilão da Vale na Bolsa de Valores.  Fomos eu e Pinguelli e outros pelas ruas gritando contra privatização. Por várias vezes o leilão foi interrompido por conta da eficiente ação judicial e suas liminares do advogado Marcelo Cerqueira.

As privatizações da Vale, Telebras e  do setor elétrico atraíram grande mobilização,   sob a liderança do Pinguelli.  A COPPE se tornou o centro de inteligência nacional contra esse processo global de submissão dos países ao mundo industrializado.  O material escrito sobre o tema foi objeto de um livro,  País em Leilão, que prefaciei. Íamos na imprensa para reverberar essas denuncias. Certa vez, o JB abriu espaço para uma bombástica entrevista dele sobre a Vale do Rio Doce. O jornalista também me ouviu, e colheu a seguinte declaração minha:

– Isso é um conluio do BNDES com a possível compradora.

Foi motivo suficiente para que o presidente do BNDES, José Pio Borges, nos processasse. Marcelo Cerqueira, do GAT, nos defendeu e conseguiu arquivar a denúncia, mas antes houve um ato de desagravo ao Pinguelli no Clube de Engenharia, presidido por Raimundo Oliveira, aliado de primeira hora nesta luta que travamos. De qualquer maneira, a denúncia funcionou, pois o BNDES fez com que a Vale fosse vendida a outro grupo, formado pela CSN, Bradesco e outros. Vendida por R$ 3,3  bilhões de porteira fechada e mais tarde avaliada em R$ 300 bilhões. Estava concluída a alienação de uma das empresas mais estratégicas do País.  Havíamos sido derrotados. O país perdia um de seus maiores patrimônios para enfrentar a globalização assimétrica. Colheríamos os frutos mais tarde.

Burocracia 

Pinguelli empunhou também a bandeira da luta contra a burocracia na pesquisa. Várias manifestações suas em artigos de jornais davam visibilidade a essa luta, que tinha no Acordão 2731/2008 TCU-MEC um verdadeiro Ato Institucional Número 5. Ele interpelou o MEC durante a gestão do ministro Haddad. Estive junto com ele na audiência com o Ministro, que em termos práticos lavou as mãos, dizendo que era do TCU a responsabilidade, e que no MEC esse assunto estava com sua Secretaria de Ensino Superior, Maria Paula Dallari. Fomos então ao seu gabinete. Chegando lá, Maria Paula (professora da USP) revelando seu desapreço pelas fundações de apoio, nos disse:

– Pinguelli, essas fundações não são transparentes! Ninguém sabe nada sobre o que fazem. Não publicam nada!

Pinguelli então me pediu para mostrar a Coppetec. Abri a página da COPPETEC e mostrei as normas, projetos e tudo que mais poderia representar a transparência de uma fundação. Ela se engasgou… mais tarde soube que passou a defender o modelo das fundações de apoio.

Pinguelli saiu da reunião orgulhoso, se despediu da secretaria, dizendo que iria lutar contra esse Acordão. Fomos então convocados pelo relator do Acordão no TCU, ministro Aroldo Cedraz, ex pró-reitor da UFBA, mais tarde envolvido em um escândalo de tráfico de influência.  Na reunião no TCU, repleta de técnicos e assessores, tendo  o Ministro Cedraz presidindo, numa determinada hora, ao ouvir os técnicos e o ministro repetirem números de leis e normas, Pinguelli se levantou, enfadado, e disse a todos:

–  Não conheço esses números e leis de que vocês estão falando, de número eu conheço bem o 458, que é o número do ônibus que passa na minha universidade. Vim aqui para tentar reduzir a burocracia na pesquisa. Agora tenho de ir embora, vou dar minha aula, tenho de pegar meu voo, meus alunos estão me esperando.

Pegou a mochila colocou no ombro, e saiu… Perplexidade geral. Esse era o Pinguelli:  irreverente, contundente nas suas críticas, mas profundamente verdadeiro. O TCU queria esnobar seu conhecimento sobre leis para exasperar o controle burocrático sobre as pesquisas e encontrava uma gigantesca barreira no Pinguelli. A luta estava apenas começando.

Outro grande momento foi quando a CGU publicou a cartilha de entendimentos com 112 artigos ensinando (sic) como deveríamos cumprir as regras do Acordão 2731. Pinguelli tratou com desprezo desde o nome cartilha. Na rádio CBN, bateu boca com o secretário da CGU, Jorge Hage. Fizemos um ato que reuniu 400 pessoas no auditório da OAB do Rio. Alugamos ônibus para transportar professores, alunos e funcionários. Foi um evento muito forte e o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, se tornaria o mediador do conflito.

Nesses dias, fomos ao Congresso Nacional tentar melhorar a legislação das fundações de apoio, pegando carona numa MP que tramitava na câmara e no senado pelas mãos do MEC. Pelo Acordão do TCU, era proibido as fundações receberem os recursos dos projetos diretamente em suas contas: eles tinham de passar pela conta única da Universidade apoiada. Essa trava esterilizava os recursos privados, pois eles se tornariam públicos ao entrarem pela conta única, tornando-se um recurso comum do orçamento publico, sujeito a todas as amarras legais.  A lei 12863/13, mais tarde sancionada, liberaria o dinheiro do projeto desse caminho burocrático.

Em outro episódio, estávamos atras de um cercado no plenário que nos impedia de ter contato com os parlamentares. Aproveitamos o tumulto causado pela invasão por bombeiros que manifestavam sua revolta contra as punições recentes e pulamos o cercado. Falamos com os líderes dos partidos para votar na emenda que queríamos. O relator, por exemplo, não tinha incluído os projetos de ensino na redação. No dia seguinte, o presidente da Câmara perguntou a um deputado:

– Vocês mudaram a proposta do governo com ajuda daquele professor de cabeça branca que estava pedindo voto em plenário?

Ele se referia ao Pinguelli, que junto comigo foi de deputado em deputado. Vitória desse esforço, a lei 12.863 merecia ser chamada de lei Pinguelli. Voltamos aliviados e preocupados com a CGU que havia perdido a batalha. Mais tarde, o CONFIES concedeu um troféu ao Pinguelli por essa ajuda ao funcionamento das fundações de apoio contra a burocracia.
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Teatro: o suicídio de um reitor 

Juntos, como muitas vezes fazíamos, criamos a ideia de usar a linguagem do teatro para ampliar a denúncia da burocracia dos “Us”: TCU, CGU e AGU. Pinguelli me pediu para tocar essa ideia, totalmente diferente de tudo que tínhamos feito. Chamei a atriz Jaluza Barcelos, que tinha sido diretora da escola de artes cênicas. Ele trouxe seu grupo de teatro e o autor Levi escreveu uma peça – O Suicídio do Reitor – que começaria com a decisão de um reitor se suicidar após ser acusado de ter trocado a rubrica A pela rubrica B em seu projeto. O reitor comunicava a sua família essa decisão e a partir dai se desenvolvia a peca até o final feliz, quando os agentes dos “Us” se convenciam de que tinham e passar para o lado da ciência. A ironia triste é que o reitor Cancellier,  movido pela mesma amargura do reitor da peça, cometeria suicídio depois de difamado pela operação “Ouvidos Moucos”. O caso foi denunciado como abuso dos órgãos de controle.

Instituto Virtual para uma ajuda real 

Eu estava presidindo a FAPERJ e de lá mantivemos várias iniciativas, como por exemplo a do Institutos Virtuais. Tratava-se de um auxilio financeiro de 200 mil reais para pesquisadores destacados, com temas relevantes, para realizar um plano de trabalho.  O primeiro deles seria o de Mudanças Globais, sob a condução do Pinguelli.

Outro instituto foi concedido ao professor Bartholo, do programa de Produção;mais um, sobre Economia, ficou com o professor Carlos Lessa. Pinguelli nessa época se encontrava fora da direção da COPPE, instalado em uma sala no CT.
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China: COPPE atravessa o mundo…

Era 2007, eu estava na minha sala na Coppetec quando Pinguelli, na época diretor da COPPE, me chamou ao seu gabinete. O conhecido Wladimir Pomar, amigo dele, estava lá para propor que a COPPE fosse à China em busca de parcerias. Como era comum, Pinguelli queria que eu o ajudasse a empreender essa jornada. Ir à China! Ele me perguntou como poderíamos fazer isso. Sugeri uma delegação e um plano de visitas, que o Pomar poderia nos ajudar a montar, pelo conhecimento que tinha sobre aquele país. A universidade de Tsinghua (a mais importante da China) estaria no roteiro. A Academia de Ciências também, além do programa espacial e do parque tecnológico de Pequim.

Nossa delegação reuniu Pinguelli, Aquilino, Segen, professor Su Jian, do programa nuclear da COPPE, e eu como Coppetec. A missão seria de uma semana. Foi muito exitosa e a partir dela criamos um centro bilateral com a Universidade de Tsinghua e a COPPE, dedicado a tecnologias limpas de energia de baixo carbono. Ficamos deslumbrados com o desenvolvimento tecnológico da China. A cooperação firmada entre a COPPE e a Universidade de Tsinghua seria chancelada posteriormente pelo presidente Lula em visita aquele país.  Pinguelli empreendia a expansão da COPPE, cruzando oceanos e reforçando seu título de cidadão do mundo.  O centro tinha uma sede na Universidade chinesa e outro na COPPE. Muitos seminários e projetos foram realizados em conjunto em Pequim e no Rio de Janeiro.
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Ponte do Saber e a oportunidade: saída para a zona sul

Mantínhamos uma relação de amizade com Luís Fernando Pezão, então vice-governador do estado do Rio. Como ex-secretário de Ciencia, Tecnologia e Inovação, ajudei-o a implantar no seu município uma rede ligada a internet, com base no projeto da Rede Rio da FAPERJ que eu próprio tinha ajudado a realizar em 1992. Com esse projeto ele foi parar na capa da Newsweek. Certa vez, Pezão me disse que gostaria de visitar a COPPE. Como sempre, Pinguelli me chamou para participar do encontro.

Na visita, Pezão contou que era o coordenador do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, um plano de grandes obras do governo do RJ, emprendido com apoio do governo Federal. Em seguida, perguntou a Pinguelli que obras interessariam a COPPE. Pinguelli me pediu o croqui da ponte feito pelo professor Ronaldão, uma ponte simples que ligaria a parte da Ilha do Fundão oposta ao aeroporto do Galeão, aliviando os grandes engarrafamentos que se formavam no final do dia. A ponte era desejada por todos da comunidade da Ilha do Fundão, mas foi Pinguelli que viabilizou sua construção, por meio da parceria com o governo, graças ao senso de oportunidade dele e do vice -governador. Um tempo depois nasceu a Ponte do Saber, uma linda obra de arte, uma ponte estaiada que segundo seu arquiteto simboliza uma garça, em meio a uma Baia da Guanabara poluída.
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Amizade

Impressionava a independência intelectual e política do Pinguelli e a amizade que ele mantinha com algumas pessoas que estava ao seu redor. Sua solidariedade era irreparável com os amigos e portanto comigo, como já relatado. Como muitos sabem, fui candidato a governador em 2010. Pinguelli fez questão de gravar um vídeo me apoiando, no qual falava do projeto I2000 como uma obra que estava em meu curriculum de realizações, entre outras. Embora fosse ligado ao PT, publicamente vinculado ao Lula, que estava com outro candidato, ele não deixou de gravar uma mensagem pedindo votos na TV. Em todas as festas que eu promovia ele era convidado e comparecia, sempre alegre e cheio de simpatia

Nunca deixou de me convidar para trabalhar com ele em todos os mandatos para o qual foi eleito na COPPE/UFRJ. Em momentos recentes, compartilhamos nossas avaliações sobre os caminhos a serem trilhados pela COPPE. Sempre conversamos com muita harmonia, quase sempre nos alinhavamos nas visões sobre os problemas da realidade.

Por tantas realizações e pelo seu amor profundo pelo Pais, Pinguelli esta na mesma categoria de visionário e intelectual engajado como Darcy Ribeiro que também conheci. Pinguelli vive!